domingo, 12 de setembro de 2010

História de um cão

Eu tive um cão. Chamava-se Veludo:
Magro, asqueroso, revoltante, imundo;
Para dizer em uma só palavra tudo
Foi o mais feio cão que houve no mundo.

Recebi-o das mãos de um camarada
Na hora da partida. O cão gemendo,
Não queria me acompanhar por nada:
Enfim – mau grado seu – o vim trazendo.

O meu amigo cabisbaixo, mudo
Olhava-o... O sol nas ondas se abismava...
Adeus! – me disse, - e ao afagar Veludo
Nos olhos seus o pranto borbulhava.

“Trata-o bem. Verás como rasteiro
“Te indicará os mais sutis perigos;
“Adeus! E que este amigo verdadeiro
“Te console no mundo êrmo de amigos.

Veludo, a custo, habituou-se à vida
Que o destino de novo lhe escolhera;
Sua rugosa pálpebra sentida
Chorava o antigo dono que perdera.

Nas longas noites de luar brilhante,
Febril, convulso, trêmulo, agitando
A nua cauda – caminhava errante
À luz da lua – tristemente uivando.

Toussenel, Figuier e a lista imensa
Dos modernos zoólogos doutores
Dizem que o cão é um animal que pensa:
Talvez tenham razão esses senhores.

Lembro-me ainda. Trouxe-me o correio,
Cinco meses depois, do meu amigo,
Um “envelope” fartamente cheio:
Era uma carta. Carta! Era um artigo,

Contendo a narração miúda e exata
Da travessia. Dava-me importantes
Notícias do Brasil e de La Plata,
Falava em raios, árvores gigantes;

Gabava o “steamer” que o levou. – dizia
Que ia tentar inúmeras empresas:
Contava-me também que a bordo havia
Mulheres joviais – todas francesas.

Assombrava-se muito da ligeira
Moralidade que encontrou a bordo:
Citava o caso de uma passageira...
Mil coisas mais de que não me recordo.

Finalmente, por baixo de tudo,
Em “nota bene” do melhor cursivo
Recomendava “o pobre Veludo”
Pedindo a Deus que “o conservasse vivo”.

Enquanto eu lia, o cão tranqüilo e atento
Me contemplava, e, - creia que é verdade
Vi, comovido, vi nesse momento
Seus olhos gotejarem de saudade.

Depois lambeu-me as mãos humildemente,
Estendeu-se a meus pés silencioso,
Movendo a cauda, - e adormeceu contente,
Farto de um puro e satisfeito gôzo.

Passou-se o tempo. Finalmente um dia
Vi-me livre daquele companheiro:
Para nada Veludo me servia,
Dei-o à mulher dum velho carvoeiro.

E respirei! – Graças a Deus! Já posso
- Dizia eu – Viver neste bom mundo
Sem ter que dar diariamente um osso
A um bicho vil, a um feio cão imundo.

Gosto dos animais, porém prefiro
A essa raça baixa e aduladora
Um alazão inglês, de sela ou tiro,
Ou uma gata branca cismadora.

Mal respirei, porém! Quando dormia,
E a negra noite amortalhava tudo,
Senti que à minha porta alguém batia:
Fui ver quem era, abri. Era Veludo.

Saltou-me às mãos, lambeu-me os pés ganindo,
Farejou toda a casa satisfeito;
E – de cansado – foi rolar dormindo
Como uma pedra – junto do meu leito.

Praguejei furioso. Era execrável
Suportar esse hóspede importuno
Que me seguia como um miserável
Ladrão, ou como um pérfido gatuno.

E resolvi-me enfim. Certo, é custoso
Dizê-lo em alta voz e confessá-lo:
Para livrar-me desse cão leproso
Havia um meio só: era matá-lo.

Zunia a asa fúnebre dos ventos;
Ao longe o mar, na solidão gemendo
Arrebentava em uivos e lamentos...
De instante a instante ia o tufão crescendo.

Chamei Veludo, ele seguiu-me. Entanto
A fremente borrasca me arrancava
Dos frios ombros o revolto manto
E a chuva meus cabelos fustigava.

Despertei um barqueiro. Contra o vento,
Contra as ondas coléricas vogamos;
Dava-me força o torvo pensamento:
Peguei num remo – e com furor remamos.

Veludo à proa olhava-me choroso
Como um cordeiro no final momento:
Embora! Era fatal? Era forçoso
Livrar-me enfim desse animal nojento.

No largo mar ergui-o nos meus braços
E arremessei-o às ondas de repente...
Ele moveu gemendo os membros lassos
Lutando contra a morte. Era pungente.

Voltei a terra, - entrei em casa. O vento
Zunia sempre na amplidão – profundo.
E pareceu-me ouvir o atroz lamento
De Veludo, nas ondas moribundo.

Mas ao despir dos ombros meus o manto
Notei – oh grande dor! - Haver perdido
Uma relíquia que eu prezava tanto!
Era um cordão de prata: - eu tinha-o unido

Contra o meu coração constantemente
E o conservava no maior recato,
Pois minha mãe me dera essa corrente
E, suspenso à corrente, o seu retrato.

Certo caíra além, no mar profundo,
No eterno abismo que devora tudo;
E foi o cão, foi esse cão imundo
A causa do meu mal! Ah! Se Veludo

Duas vidas tivera, - duas vidas
Eu arrancara àquela besta morta!
E aquelas vis entranhas corrompidas!
Nisto senti uivar à minha porta.

Corri, - abri. Era Veludo! Arfava
Estendeu-se a meus pés – e docemente
Deixou cair da boca que espumava
A medalha suspensa da corrente.

Fora crível, oh Deus? – Ajoelhado
Junto do cão, - estupefato, absorto,
Palpei-lhe o corpo: estava enregelado;
Sacudi-o, chamei-o! Estava morto.

LUIS GUIMARÃES JÚNIOR