segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Cachoeira e S. Félix

QUANDO os pioneiros partiram de Salvador, capital da Bahia, com destino ao Recôncavo Baiano, foram por mar. Depois de navegarem algumas horas, encontraram um grande rio navegável, que denominaram Paraguassu, em homenagem à índia Paraguassu. Tiveram a sensação de aportarem em uma região onde a grande artista, que é a natureza, esculpiu e pintou a floresta e o céu em cores mais belas que as do arco-íris, tendo como acabamento um rio ao meio.
Extasiados, os pioneiros contemplaram aquelas terras selvagens, habitadas por duas tribos de índios amigos. Uma em cada lado do rio. Puseram o primeiro marco da fazenda Cachoeira. O nome foi influenciado pela disposição das águas do rio e também pelo nome da mais bela e graciosa índia, até então vista nas terras da Bahia. Chamava-se Cachu. Era filha do chefe da tribo. Tinha a fidalguia de uma nobre européia. Seus olhos eram dois oceanos de luz, que faziam contraste com a beleza do rio. Seus cabelos negros eram longos como as caudalosas correntes do rio. Os índios na­quele tempo não eram estúpidos como os atuais, que amar­ram uma embira na barriga e pensam que estão vestidos.
Os pioneiros tiveram carinhosa recepção pelos índios. Inúmeras canoas cruzaram o rio.
Eram os da outra tribo, que vieram saudar e dar boas vindas aos viajantes. Não desejavam porém permanecer ali os pioneiros. Desejavam seguir para a frente e reservar aquele pedaço de céu com um rio e duas povoações em suas margens para a etapa final. Reservaram como uma deliciosa sobremesa, para um banquete de desbravamento. Atravessaram o rio em canoas dos índios, decoradas com flores silvestres. Na outra margem do rio eles puseram um marco com um nome, que na volta modificaram para S. Félix. Estavam pisando em terras daqueles índios que atravessaram o rio para os saudar. Entre eles destacava-se o jovem índio Iratu, filho do cacique.
Belo espécime de sua raça. Vigoroso e destemido, era o maior caçador de toda a região. No seu coração habitava a bela índia Cachu, sua noiva. Também ele encantou os viajantes, com a sua sabedoria e a sua inteligência.
Os pioneiros deixaram aquele paraíso e prosseguiram enfrentando as vicissitudes, até chegarem a uma planície a que denominaram Cruz das Almas.
Aquela bandeira terminava ali. Não tinham mais co­ragem de prosseguir, porque o desejo geral era regressar e acampar nas margens do Rio Paraguassu. E assim fizeram.
Os índios de ambas as margens os esperaram com gran­des festas. Os tambores anunciaram o regresso dos pio­neiros. Flautas de bambu tocavam melodias índias. O je­suíta frei Afonso batizou o índio Iratu com o nome de Félix. Depois, em homenagem às extraordinárias qualida­des daquele atlético índio, os pioneiros tiraram o marco que antes deixaram e puseram outro com o nome de S. Félix, onde mais tarde nasceu a bela cidade que conserva o mesmo nome. Descansaram alguns dias. Armaram as barracas em ambas as margens do rio, a fim de agraciarem com suas presenças as duas tribos.
Depois, saudosos, partiram, levando para Salvador o heroísmo de suas conquistas, os presentes recebidos e o relato maravilhoso daquelas terras selvagens, onde pela primeira vez o pé do homem civilizado pisou.
Ao ouvir o relato, o holandês Bernard, traficante de escravos, pôs em um navio negreiro (próprio para rios como o Paraguassu) todos os seus escravos e foi apossar-se da­quelas terras, à margem do Paraguassu, relatadas com tanta beleza. Chegando lá escolheu Cachoeira. Obrigou os es­cravos e os índios a trabalharem doze horas por dia, a fim de construírem uma mansão à beira do rio, no lugar onde hoje é o cais. Depois da bela casa pronta, o maldito tam­bém queria fazer um harém. Mandou buscar mulheres em Salvador. A beleza da índia Cachu o seduziu. Ele queria que ela fosse a favorita do harém. Cachu recusou. O mal­vado a agarrou à força. Ela o esbofeteou. Aquela mão índia foi a primeira mão que esbofeteou aquela face he­dionda. Em seguida ela remou na canoa e fugiu para S.Félix em busca de proteção do seu amado Félix. O mal­vado segui-a com os seus escravos, armados. Tiraram Cachu dos braços de Félix. A uma reação dos pobres ín­dios, que não tinham armas de fogo, o malvado mandou exterminar todos eles, dali, de S. Félix. Salvaram-se ape­nas alguns, que conseguiram fugir para as matas.
Cachu viu o seu amado tombar ao impacto das balas assassinas. A terra e as areias do rio ficaram tintas de sangue. Os corpos dos índios foram atirados no rio. O malvado trouxe Cachu de volta, para Cachoeira. Os índios de Cachoeira junto com o cacique seu pai vieram em sua defesa. Tiveram a mesma sorte que os índios de S. Félix. A grande calçada, que o malvado mandou fazer em volta da casa ficou tinta de sangue, e ainda a terra e a areia. Cachu foi assassinada. A matança de índios foi grande. De am­bos os lados os índios eram bravos. Lutaram até morrer. Suas ilechas eram impotentes, diante das armas de fogo.
Os corpos também foram atirados no rio. As águas do Paraguassu estavam vermelhas, com o sangue dos mártires. O rio Paraguassu foi testemunha daquele massacre. Guar­dava no seu seio os corpos dos mártires. Suas águas cor­riam como lágrimas de dor.
Barnard acendeu grandes fogueiras e fêz uma grande festa, para comemorar o massacre. Para ele tudo estava bem, mas para o rio Paraguassu, não.
Acabadas as festividades todos foram dormir. Só o rio não dormiu. Ele precisava de lavar o sangue dos mártires. O rio, que nunca antes crescera, naquela noite cresceu... cresceu... cresceu o volume de suas águas até atingirem a terra de Cachoeira e S. Félix. O sangue dos mártires foi lavado. O rio continuou crescendo, até cobrir a casa de Bernard. Ele, seus filhos e seus escravos foram carre­gados pela enchente, sem tempo para se defenderem.
O rio só deixou de subir quando não mais existia pedra sobre pedra na casa do malvado.
Depois outros povos vieram, colonizaram S. Félix e Cachoeira. Seus filhos foram nascendo, com fibra de he­róis. A alma de Cachu infundiu mais coragem nos herói­cos filhos de Cachoeira, levando-os a soltarem o primeiro grito de independência, jamais ouvido antes no Brasil. Aquele grito que ecoou por todo o Brasil! Que encheu o Brasil de orgulho! Aquele grito que chegou aos ouvidos de D. Pedro I, conduzindo-o às margens de outro rio, o Ipiranga, onde sua majestade, erguendo a sua espada, soltou aquele histórico "Independência ou Morte"! ([1])
([1]) Este conto é "science fiction", mas sobre o primeiro grito de Independência no Brasil é realidade.
Quando Cachoeira soltou o seu grito de independência S. Félix extasiado ouviu. Seus filhos estavam prontos para ajudar a cidade irmã. Muitos atravessaram o rio e foram unir-se aos heróis. Envolveram-se na mesma bravura. Si­lencioso o Rio Paraguassu contemplou. Ele é a alma e o coração de S. Félix e Cachoeira. Onde nasce, ninguém se preocupa em saber; por onde passa a ninguém importa, o que importa é que a sede do Rio Paraguassu é em Ca­choeira e S. Félix.
Como um réquiem aos índios massacrados, o Rio Pa­raguassu ainda continua, com as enchentes, lavando as calçadas e cobrindo as casas de Cachoeira e S. Félix. Esta última resiste às enchentes, com heroísmo. As duas cidades e o rio são o cartão postal do Estado da Bahia. E Cachoeira, que devia ser o selo de ouro do Brasil, desco­nhecida e esquecida nos tempos de agora, com heroismo resiste às enchentes daquele fabuloso rio, que as autoridades brasileiras nunca tiveram consideração de o mandar dragar, em benefício daquela cidade.

Princesa Kee-Kow (contos). KOSNICK, Maria Chiacchio

Cidade Governador Mangabeira

A PEQUENA cidade de Governador Mangabeira foi plantada e fundada com a bravura dos pioneiros.
É uma roseira no recôncavo baiano, que deu um galho com três rosas em longas hastes, que são as suas três ruas. É uma cidade pobre, mas tem a riqueza no coração de seus habitantes.
Pertencia a Muritiba, um arraial. Quis a sua independência e tornar-se uma cidade, para honrar o nome de seu filho, o grande poeta, Castro Alves, nascido em Cabeceiras, que pelo direito pertence a Governador Mangabeira. A cidade é limpa, as casas são graciosas. A cadeia está sem­pre vazia porque não há criminosos.
A alma de Castro Alves predomina até no ar que se respira. A poesia continua, como no tempo em que seu filho cantou, em versos imortais, o Navio Negreiro e outros versos em defesa dos oprimidos e em defesa da pátria amada: Brasil.
A poesia de hoje não está nos versos do poeta. Está na beleza de suas mulheres. Está nas noites de lua que a eletricidade não conseguiu superar; está no solo fecundo onde crescem flores e hortaliças em abundância; está na sombra das mangueiras, que dão os mais deliciosos frutos; está na sombra das jaqueiras, que nos convida a repousar olhando de baixo os seus frutos, que parecem balões pendurados; está na fonte da Bica que com a sua água fresca e cristalina oferece banhos sadios e maravilhosos; está no chapéu de couro dos catingueiros, que aos sábados vêm fazer a feira; está nas casas de sapé dos arredores; está na graciosa igreja, que aos domingos se abre, quando o padre de S. Félix vem celebrar a missa, está, enfim, na lenda do logarejo chamado Bom Sucesso, onde se venera a imagem do Senhor de Bom Sucesso, padroeiro da cidade, que antes se chamava Cabeças.
O nome originou-se porque quando os pioneiros par­tiram de Salvador, capital da Bahia, com destino ao recôn­cavo baiano, desbravando matas e conquistando terreno, à foice e a machado, viram um caminho naquele lugar, que parecia uma estreita estrada. Eles armaram as barracas, plantaram um marco, fizeram grandes fogueiras, dispostos a descansarem alguns dias, a fim de refazerem as energias perdidas. Depois prosseguiram a jornada, até a planície que eles denominaram Cruz das Almas, porque no meio dos arbustos havia uma grande cruz de madeira. Aproxi­maram-se e viram que a cruz era uma árvore, que nasceu em forma de cruz.
Depois os índios avisaram que eles não voltassem, por­que poucas léguas distante, num lugar que tinha um ca­minho como estreita estrada, existia uma grande cobra, com vinte e um metros de comprimento e com sete cabeças.
Comia com todas as sete cabeças, durante sete dias, depois dormia sete dias. Quando conseguia pegar um índio, comia o corpo, deixava a cabeça, que guardava perto da fonte da Bica, como troféu.
Eles tiveram sorte, quando passaram, a cobra estava dormindo. Só uma coisa, ela tinha medo: era do fogo.
Eles não podiam permanecer para sempre naquele lugar, que eles fundaram a fazenda Cruz das Almas. Era preciso matar o monstro e voltar. Bem armados, foram preparando fogueiras, como as de S. João, quando estavam próximo do lugar. Puseram um líquido inflamável e deixaram para acender quando fosse preciso. A cobra estava acordada. Quando os viu, partiu para liquidá-los. A fuzilaria foi cer­rada. Quanto mais eles atiravam, mais o monstro avançava. Eles foram recuando e acendendo as fogueiras. Assim eles salvaram as suas vidas. Desanimados, voltaram.
Ao ouvir o insucesso da missão, frei Afonso, o Jesuíta, que os acompanhava, tinha ficado em Cruz das Almas, re­zando, prometeu rezar mais e encontrar uma solução. Ele passou a noite deitado, ao pé da cruz, rezando.
No dia seguinte ele disse: — "Nós temos um canhão, vamos precisar. Levarei sete balas de canhão, com água benta. Uma para cada cabeça da cobra. José, que é escul­tor, deverá esculpir uma cruz de madeira, de jacarandá, e uma imagem de Jesus, em cajá, para botarmos no canhão. Só assim poderemos vencer o monstro”.
Tudo foi feito. Levaram o canhão, com a cruz e a ima­gem de Jesus, na frente. Quando o monstro apareceu, o primeiro tiro arrancou uma cabeça, o segundo outra, até o último, que arrancou a última cabeça. A serpente soltava urros, abalava tudo. Depois eles queimaram o corpo da ser­pente. Encontraram muitas cabeças de índios mumificadas pela cobra, que eles deram sepultura. Por esse motivo eles batizaram o lugar com o nome de Cabeças. E pela ajuda de Jesus, cuja imagem estava na frente do canhão, pelo sucesso alcançado, frei Afonso batizou a imagem com o nome de Senhor do Bom Sucesso.
Até hoje é venerada em Governador Mangabeira.

Princesa Kee-Kow (contos). KOSNICK, Maria Chiacchio

Cruz das Almas

OS PIONEIROS partiram de Salvador, capital da Ba­hia, com destino ao recôncavo baiano. Foram por mar. Depois que navegaram algumas horas, passaram para um grande rio, chamado Paraguassu. Aportaram em um lugar onde puseram o primeiro marco de uma fazenda, hoje a Cachoeira heróica, que foi a primeira cidade do Brasil a dar o grito de independência.
Nos tempos atuais resiste heroicamente às enchentes do Paraguassu. Do outro lado do rio puseram outro marco onde mais tarde nasceu a bela cidade de S. Félix. Depois eles subiram, desbravando a mata, a serra e do alto con­templaram o rio que corria entre duas terras bravias, sem poderem imaginar que mais tarde seria o mais lindo espe­táculo da Bahia: contemplar do alto a grande ponte sobre um rio, que tem em suas margens duas lindas cidades — S. Félix e Cachoeira.
Depois os pioneiros seguiram sua árdua jornada, pois tinham de abrir caminho à foice e a machado. Plantaram um marco no lugar onde hoje é Muritiba. De­pois de muito andarem puseram outro marco no lugar que se denomina cidade de Governador Mangabeira. Ali arma­ram barracas e fizeram fogueiras, dispostos a descansarem alguns dias, a fim de armazenarem novas energias. Pros­seguiram a jornada, que era lenta porque, como já disse, tinham que abrir caminho à foice e a machado.
Três dias depois chegaram a uma grande e bela planí­cie. Seus corações exaltaram, quando eles viram, no meio de pequenos arbustos, uma grande cruz de madeira, cujas dimensões se assemelhavam com a Cruz do Gólgota. Era majestosa e bela. Era mais que tudo misteriosa. "Qual seria a mão que colocou aquela cruz ali?" Eles se per­guntavam uns aos outros, admirados.
Aproximaram-se da cruz, tiveram a surpresa de verificarem que não era feita pela mão do homem. Era uma cruz feita pela natureza. Era uma árvore, que nasceu e cresceu em forma de cruz. Frei Afonso, o jesuíta que acompanhava os pioneiros, disse: "neste lugar não há ninguém, portanto esta cruz pertence às almas", e batizou o lugar com o nome de CRUZ DAS ALMAS. Dali mais tarde surgiu a grande cidade de Cruz das Almas, alto ponto no progresso do Estado da Bahia. Na mencionada cruz Frei Afonso celebrou a primeira missa que se ouviu naquelas planícies.
Dias depois apareceu um grupo de índios, que tinham sua aldeia do lado dos Poções. Eram mansos. Contaram a história da Cruz. segundo a qual na tribo, séculos passados, existia uma linda índia, filha do cacique. Era querida de todos. Seu nome era Iracy. Só uma santa podia ter um coração tão magnânimo. Cui­dava dos doentes, protegia as crianças, dava assistência aos velhos e alimentava os pássaros. Os guerreiros da tribo a disputavam. Por fim ela ficou noiva de Ubiratan, o gran­de e viril guerreiro. Porém outra índia, por inveja, pois amava Uribatan, jurou vingança. Uma noite. Iracy sonhou com um homem chamado Jesus Cristo, que tinha uma grande cruz, e que lhe ensinou verdades divinas e disse que não comessem mais carne humana, que era pecado. No dia seguinte, Iracy contou o sonho e pregou a palavra de Deus. Todos a ouviram maravilhados. A partir daquele dia deixaram de comer carne humana. A invejosa índia, cujo nome era Jupiranha, reuniu um grupo de índios e lhes disse que Iracy estava com espírito maligno, que era pre­ciso matá-la, para não contaminar a tribo, com maus espíritos.
A malvada atraiu a pobre Iracy a um lugar distante e com seus asseclas a mataram a pauladas. Já tinham uma onça presa para depois entregarem o corpo para a onça, a fim de que a mesma levasse a culpa. Porém os gritos da pobre Iracy foram ouvidos, por alguns guerreiros, que estavam caçando e correram incontinenti ao lugar. Ali mes­mo fizeram justiça. Mataram Jupiranha, do mesmo modo que eles mataram Iracy. Levaram os asseclas de Jupira­nha para eles dizerem a verdade. Enterraram o corpo da malvada em um lugar distante.
A sua alma virou um pás­saro agoureiro, que nas noites sem lua, quando as estrelas se escondem, como que amedrontadas, põe-se a gritar: Ca­nalha... Canalha... Canalha... Justamente o que ela fora em vida.
Na sepultura de Iracy nasceu a grande árvore em for­ma de cruz. Não se sabe como a Cruz desapareceu miste­riosamente. Os índios disseram que Tupan a levou junto com o corpo de Iracy para as planícies divinas. Mas no lugar nasceu outra Cruz. A CRUZ DAS ALMAS, cidade que é tão linda e tão poética, como foi Iracy.

Princesa Kee-Kow (contos). KOSNICK, Maria Chiacchio

Feira de Santana

ERA uma linda princesa índia, de longos cabelos luzidios, olhos negros e corpo que parecia de uma Vênus. Seu nome era Feira.
Usava grandes argolas de ouro, que em conjunto com o seu diadema, de pedras preciosas e penas, davam expressão à sua personalidade sertaneja. Sua saia era longa, feita de um tecido de fibra de bananeira e con­tas de mulungu. Era querida de toda a tribo. Quando cantava, a sua voz suave e bela atraía os pássaros, com a voz do Uiarapuru. Seu noivo era um príncipe índio, cha­mado Jiquié. Habitava a muitas luas distante da sua gleba, porém ele vencia as asperezas do sertão, viajando por mui­tas semanas, para ver a sua amada.
A princesa Feira armava a sua rede na sombra dos umbuzeiros e saboreava seus frutos deliciosos. O vento morno e suave a embalava nas noites maravilhosas e per­fumadas do sertão. Naquele tempo não havia seca, porque o sertão não estava desnudo. A mão do homem ainda não tinha decepado as árvores. O sertão era verde como a esperança. Coberto de flores, como um divino jardim. Quan­do a noite descia, os índios acendiam a grande fogueira, para espantar os mosquitos, as cobras e as onças, e também se aquecerem do frio, que descia com a noite, enquanto uma flauta índia tocava melodiosamente.
Feira costumava ir pelos campos, colher flores. Quan­do ela viu o primeiro homem branco que pisou naquelas glebas, um padre jesuíta, que estava sendo atacado por um jaguar negro, rápida, atirou uma flecha no coração da fera, matando-a. Era fêmea. O macho, que tudo viu, jurou vingança. Feira levou o padre jesuíta, que se cha­mava Frei Gonsalo, para a taba. O pajé curou-lhe os feri­mentos feitos pela onça. O jesuíta batizou os índios. À Feira acrescentou-lhe o nome de Santana. Passou a cha­mar-se, pois, Feira de Santana. O cacique, seu pai, foi batizado com o nome de Salvador e a mãe com o nome de Bahia.
O jesuíta avisou que uma expedição estava a cami­nho dali, desbravando as matas. Os índios estavam pre­parando grandes festas e danças, para receber os visitantes. Porém o jaguar negro não parava de rondar a taba, em busca de oportunidade para vingar a companheira abatida pela princesa índia. Feira de Santana não imaginava que estava sendo observada pela fera, que se ocultava nas moi­tas e tinha sempre os seus olhos cintilantes, injetados de ódio, dirigidos à linda princesa índia.
O dia fatal chegou quando Feira de Santana, distanciando-se da taba, foi em busca de flores, para ornamentar a aldeia, em homenagem aos visitantes, que não tardariam a chegar. Rápido, o terrível jaguar pulou sobre a pobre Feira de Santana. Seus gritos foram ouvidos por alguns índios, que partiram em seu socorro e ainda conseguiram matar o jaguar. Porém era tarde demais. Levaram a pobre índia, quase morta, para a taba. Frei Gonsalo, o jesuíta, administrou-lhe os últimos sacramentos. A expedição chegou ainda a tempo de ouvir as últimas palavras de Feira de Santana, e que foram: "Não chorem, não se preocupem, que eu nascerei outra vez".
Seu último sopro de vida foi nos braços de sua mãe Bahia. A bela Feira de Santana partiu para as glebas divi­nas. Cumpriu, no entanto, a promessa. Nasceu outra vez. Não nasceu mais a princesa índia. Nasceu uma cidade que tem o seu nome... e que é o orgulho da Bahia!... que é um poema plantado no sertão... ela nasceu FEIRA DE SANTANA, a princesa do sertão! A mais linda cidade da Bahia, com esplendor e beleza. Nas calçadas de suas ruas pisam as mais lindas moças do Brasil.
Tive a felicidade de viver dois dias e duas noites em Feira de Santana. Guardo em minha lembrança aquele pequeno espaço de tempo, como uma jóia de inestimável valor. Também guardo em minha lembrança a sua feira, rica em tudo, que parece mais uma reunião de bravos sertanejos, para uma grande comemo­ração. Vi na grande feira tudo que podia seduzir os olhos e o estômago. Também vi e ouvi os sons plangentes de uma viola, tocada por um menino cego, que parecia um lamento de dor dirigido à bela índia morta. As tão discutidas Noi­tes da Arábia não podem ser mais lindas que as noites de Feira de Santana. Um vento que parece divino sopra o calor, deixando que a temperatura desça. No ar há qualquer cousa de mistério, que nos convida a amar Feira de San­tana. Eu dormi envolta nesse mistério e sonhei com a linda princesa índia, Feira de Santana, que me embalava em sua rede e cantava para mim.

Princesa Kee-Kow (contos). KOSNICK, Maria Chiacchio

domingo, 16 de agosto de 2009

A Lenda do Milho




Para os maias, como também para os astecas, o milho foi o principal alimento, foi a fonte do progresso e das riquezas e foi até. . . um deus. Um deus verde, que eles chamavam de YUM KAAX: seus dentes eram como os grãos, seus cabelos como os dourados cabelos do milho. . .

No Brasil, os índios Parecis contavam que Ainotarê, sen­tindo que a morte se aproximava, cha­mou seu filho Caleitô e manifestou-lhe o desejo de ser enterrado vivo no meio de uma roça. Três dias depois uma planta brotaria de sua cova, e logo re­bentaria em sementes. Não sendo co­midas, mas replantadas, elas brotariam novamente e, por fim, poderiam ali­mentar todo o povo. E a lenda conta que os indígenas assim fizeram e foi assim que surgiu o milho.
Os índios Carajás, da Ilha do Bananal contam que lmaerô e Denaquê eram duas irmãs índias jovens e bonitas. Certa vez, lmaerô, olhando no céu a estrela Vésper, chamada "Taína Can", dese­jou tê-la perto de si. A estrela aten­deu seu pedido e desceu, mas sob a forma de um velhinho de barbas brancas. Vendo-o, lmaerô repudiou-o. Taína Can casou-se então, com a mei­ga e boa Denaquê. Para sustentá-la, fez um pequeno roçado e plantou nele al­gumas sementes maravilhosas que os Carajás ainda não conheciam, mas que ele, por magia, tirava das águas do Rio Araguaia. . . E entre estas sementes estavam as do milho. . . Mas, certo dia, como Taína Can estivesse demo­rando para voltar à casa, Denaquê saiu à sua procura. Que surpresa! Em vez do velho de barbas e cabelos brancos, ela encontrou a trabalhar, um belíssimo jovem, cheio de forças e de vida! Cor­reu a abraçá-lo, e os dois, felizes, voltaram para casa. — E foi assim que a nação Carajá aprendeu com Taí­na Can a plantar o milho e outros alimentos que an­tes não conhecia. . .

A Libertação dos Ventos

Há muitos e muitos séculos, o mar era sempre cal­mo. . . Os ventos impetuosos, que agitam as ondas, viviam escondidos no fundo do mar, num grande palácio de cristal. Ali dançavam em torno de sua rainha, que se chamava por isso: Rosa dos Ventos.

Um dia uma andorinha, atra­vessando o mar, encontrou uma grande procelária, o pássaro que vive entre os escolhos, e lhe contou que os pássaros, na terra, fazem seus ni­nhos nas árvores.
- Oh! - disse a procelária - Isso me parece estranho. Como fazem?
Nisso, a andorinha, já havia ido embora. A procelária meditou so­bre as palavras da andorinha e disse para si mesma:
- Será que devo ser inferior aos pássaros terrestres? Será que somen­te eu devo fazer o ninho sobre as duras rochas?
E decidiu construir o ninho sobre uma árvore. Mas, como sempre vi­vera no mar, não conhecia nada além dos mastros dos navios. Estava per­suadida de que a andorinha fizera alusão a um daqueles mastros. Então pousou sobre o mastro do primeiro navio que passou, para fazer seu ni­nho, mas os marinheiros mandaram-na embora.

"Não há felicidade para os pássaros marinhos", pensou a procelária e retirou-se enfurecida.
Passou um segundo navio, O pássaro ali pousou, mas foi tocado e assim, na terceira vez, na quarta. .
A procelária estava terrivelmente irada. . . Tratarem daquele modo uma figura tão importante? Vingar-se-ia infalivelmente.
Sabia onde era o palácio dos ventos. No centro do oceano Pacífico desponta uma pequena cúpula de cristal. É a torre do palácio dos ventos. Ali pousou a procelária e piou fortemente.
- Quem pia? - gritou de baixo o vento oriental.
- Sou eu, a procelária.
- Que deseja?
- Queria falar com a rainha!
A rainha dos ventos está sempre de bom humor, portanto, não se fêz de rogada para surgir em meio ao mar, onde estava a procelária.
- Majestade, disse o pássaro, te­nho alimentado sempre muita ami­zade por vós. Trouxe sempre ao vosso palácio as notícias do mundo...
- Eu te agradeço...
- Agora quero dar-vos um conse­lho. O vosso palácio é certamente belo e principesco, mas deveis con­cordar que, quando daí não se sai mais, torna-se uma prisão. Vós e os vossos ventos podeis nadar como os peixes, voar como os pássaros, cami­nhar como os homens e, no entanto, estais sempre reclusos. Sai, gi­rai pelo mundo afora. Vereis cidades imensas, regiões alegres, sereis vene­rada e temida.
A Rosa dos Ventos, colocou a cabeça entre as mãos e conservou-se por alguns minutos, meditando.
- Tens razão, disse por fim. É verdade, somos uns grandes tolos a correr de cá para lá, como loucos, num pequeno espaço, todo santo dia. . .O imenso oceano será nosso palá­cio e o mundo o nosso reino. . . Até outra vista, procelária, obrigada pelo conselho.
Desde aquele dia os ventos do Norte, os ventos do Sul, os do Oriente e os do Ocidente, agitam os mares e os continentes, e sua rainha os envia para aqui e para ali.
E sobre as ondas, os grandes na­vios são rebentados como punhados de nozes; são atirados para se despe­daçarem sobre os escolhos.
Lá, onde a tempestade se enfure­ce, lá onde é maior o perigo, aparece a procelária e seu grito torna ainda mais sinistro o fragor da tormenta.
Portanto, onde o pássaro negro de longas asas aparece, ele é considerado sinal de tempesta­de, e é temido pelos marujos de to­dos os mares.
Esta é a lenda sobre a libertação dos ventos, cujas origens se perdem na noite do tempo.

A Lenda da Vitória-Régia



Regozijava em festas a aldeia dos maués. Ao som de torés, maracás e outros instrumentos musicais, os guerreiros dançavam ao centro da taba iluminada de archotes, que queimavam as mais perfumadas rezinas.
Mulheres serviam as bebi­das caxiri, cauim e carne mo-queada.
A razão de tanta alegria era a celebração de uma caçada feliz. O cacique Canuqué reuniu tribos vizinhas e amigas para festejarem o acontecimento.
No meio de tanto diverti­mento, apenas a bela Nacaíra, filha do cacique, se sentia tris­te e solitária. Sempre fora disputada pelos mais formosos e destemidos guerreiros, mas a nenhum deles dava o menor olhar ou gesto de esperança. Seu coração puro não perten­cia a homens que penduravam no pescoço dentes de inimigos mortos em batalhas, numa atitude de bravura e heroísmo.
Quando pequenina, Nacaíra gostava de ouvir as histórias de Janá, velha feiticeira, que conhecia os poderes misterio­sos das plantas, a origem dos rios, a das serras, e sabia os nomes de muitas estrelas do céu. Contara-lhe uma vez Janá que a Lua era um guer­reiro branco, belo e poderoso. Nas noites de luar descia à Terra para se casar com uma jovem; depois a levava para o céu, transformando-a em bri­lhante estrela.
Nacaíra ouvia em silêncio, olhinhos presos no espaço in­finito.
— Como seria bom viver lá no alto, transformada em es­trelinha e olhar a terra peque­nina e distante. . .
As palavras da velha Janá ficaram na mente de Nacaíra, que, mesmo depois de jovem e dotada de surpreendente bele­za, jamais se interessou pelos moços da aldeia ou de outras tribos.
Nas noites de luar, saía pe­las matas fitando o céu, braços erguidos como a querer alcançar o guerreiro bem-amado. Naquela noite de festas, ela deixou as danças e cantos, as custosas bebidas e cheirosos assados e pôs-se a caminhar pela floresta.
No meio do céu a Lua brilhava tranqüila. Tudo era sossego. Apenas o vento, que brincava nas árvores, trazia o rumor distante das danças e cantos da taba. Lá longe, no azul sem-fim, as estrelas eram como tochinhas brilhando se­renas. Nacaíra encaminhou-se para a lagoa. Viu refletida nas águas a imagem querida da Lua. Boiava de mansinho como se dela se aproximasse sempre mais. Pensando no jovem branco que, por certo, vinha buscá-la, a indígena cor­reu ao seu encontro, atirando-se nas águas profundas.
Ninguém mais viu Nacaíra, a bela princesa dos maués. Mas o luar, única testemunha daquela cena, se condoeu da infeliz indiazinha; em vez de transformá-la numa estrela do céu, transformou-a em Estrela das Águas.
No dia seguinte, quando os maués andaram em busca de Nacaíra, encontraram no lago uma flor de radiante beleza, de um suave tom rosa pálido e de perfume delicado, semelhante ao do fruto maduro. Era a Vitória-Régia que, des­de então passou a enfeitar a superfície dos grandes lagos e rios.
E contam que, nas noites de luar, ela abre de mansinho as suas pétalas acetinadas para receber a luz e carícias da Lua.

A Lenda do Girassol



ERA uma vez uma estrelinha que se apaixonou pelo Sol. Por ela, não faria outra coisa que admirá-lo. Dificilmente conseguia contemplá-lo, pois mamãe Lua vigiava-a atentamente e não se cansava de dizer-lhe:
— Tontinha! Você não sabe que o Sol é o senhor do dia, o rei da luz, enquanto você nada mais é que um pequeno ponto luminoso perdido nas trevas da noite? Filhinha deixe de sonhar com o impossível.
E quando, ao despontar da madrugada, via que a pequena teimava em demorar-se no céu, obrigava-a com um gesto imperioso a retirar-se; e, se ao pôr-do-sol ela saía antes da hora marcada, ocultava-lhe a visão com o véu de uma nuvem.
Mas, um dia, a estrela apaixonada, cansada de sofrer e de ser continua­mente censurada, confiou ao rei dos ventos a sua tristeza, e pediu-lhe que a ajudasse.
O rei dos ventos pensou um pouco e logo disse:
— Para que você possa olhar o Sol, como deseja, é preciso que desça à Terra. Está disposta a fazer tal viagem?
— Sim, respondeu a estrela, trê­mula de alegria.
— E deverá também renunciar à sua luz, porque o Sol não admite competidores.
— Renuncio ao que for preciso, de todo coração!
O rei dos ventos escondeu a es­trela enamorada sob seu manto e levou-a para a Terra.
Deixou-a às margens de um trigal, justamente quando o Sol despontava entre as nuvens debruadas de púrpura e ouro.
Uma haste alta e forte levantou a estrela por sobre todas as espigas e, enquanto sua luz se consumia, seu coração transbordava de alegria.
— Bom dia, disseram-lhe os lírios, as esporinhas, as papoulas. Quem é você?
Mas ela nem sequer ouviu essas gentis palavras, pois sua atenção estava concentrada todinha no Sol. E durante todo o dia olhou-o sem pestanejar, seguindo lenta, muito lentamente com o movimento de sua cabeça ouro pálido, o percurso do grande disco de fogo.

A estrela deslumbra­da, cujas pontas agora haviam-se transformado em pétalas amarelas, ignorava tudo que havia à sua volta: flores, pássaros, espigas, formigas, árvores. . .
À noite, os lírios, as esporinhas, as papoulas e as douradas espigas cum­primentaram o novo companheiro desconhecido e, não sabendo seu no­me disseram:
— Boa noite... Girassol!