segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Cachoeira e S. Félix

QUANDO os pioneiros partiram de Salvador, capital da Bahia, com destino ao Recôncavo Baiano, foram por mar. Depois de navegarem algumas horas, encontraram um grande rio navegável, que denominaram Paraguassu, em homenagem à índia Paraguassu. Tiveram a sensação de aportarem em uma região onde a grande artista, que é a natureza, esculpiu e pintou a floresta e o céu em cores mais belas que as do arco-íris, tendo como acabamento um rio ao meio.
Extasiados, os pioneiros contemplaram aquelas terras selvagens, habitadas por duas tribos de índios amigos. Uma em cada lado do rio. Puseram o primeiro marco da fazenda Cachoeira. O nome foi influenciado pela disposição das águas do rio e também pelo nome da mais bela e graciosa índia, até então vista nas terras da Bahia. Chamava-se Cachu. Era filha do chefe da tribo. Tinha a fidalguia de uma nobre européia. Seus olhos eram dois oceanos de luz, que faziam contraste com a beleza do rio. Seus cabelos negros eram longos como as caudalosas correntes do rio. Os índios na­quele tempo não eram estúpidos como os atuais, que amar­ram uma embira na barriga e pensam que estão vestidos.
Os pioneiros tiveram carinhosa recepção pelos índios. Inúmeras canoas cruzaram o rio.
Eram os da outra tribo, que vieram saudar e dar boas vindas aos viajantes. Não desejavam porém permanecer ali os pioneiros. Desejavam seguir para a frente e reservar aquele pedaço de céu com um rio e duas povoações em suas margens para a etapa final. Reservaram como uma deliciosa sobremesa, para um banquete de desbravamento. Atravessaram o rio em canoas dos índios, decoradas com flores silvestres. Na outra margem do rio eles puseram um marco com um nome, que na volta modificaram para S. Félix. Estavam pisando em terras daqueles índios que atravessaram o rio para os saudar. Entre eles destacava-se o jovem índio Iratu, filho do cacique.
Belo espécime de sua raça. Vigoroso e destemido, era o maior caçador de toda a região. No seu coração habitava a bela índia Cachu, sua noiva. Também ele encantou os viajantes, com a sua sabedoria e a sua inteligência.
Os pioneiros deixaram aquele paraíso e prosseguiram enfrentando as vicissitudes, até chegarem a uma planície a que denominaram Cruz das Almas.
Aquela bandeira terminava ali. Não tinham mais co­ragem de prosseguir, porque o desejo geral era regressar e acampar nas margens do Rio Paraguassu. E assim fizeram.
Os índios de ambas as margens os esperaram com gran­des festas. Os tambores anunciaram o regresso dos pio­neiros. Flautas de bambu tocavam melodias índias. O je­suíta frei Afonso batizou o índio Iratu com o nome de Félix. Depois, em homenagem às extraordinárias qualida­des daquele atlético índio, os pioneiros tiraram o marco que antes deixaram e puseram outro com o nome de S. Félix, onde mais tarde nasceu a bela cidade que conserva o mesmo nome. Descansaram alguns dias. Armaram as barracas em ambas as margens do rio, a fim de agraciarem com suas presenças as duas tribos.
Depois, saudosos, partiram, levando para Salvador o heroísmo de suas conquistas, os presentes recebidos e o relato maravilhoso daquelas terras selvagens, onde pela primeira vez o pé do homem civilizado pisou.
Ao ouvir o relato, o holandês Bernard, traficante de escravos, pôs em um navio negreiro (próprio para rios como o Paraguassu) todos os seus escravos e foi apossar-se da­quelas terras, à margem do Paraguassu, relatadas com tanta beleza. Chegando lá escolheu Cachoeira. Obrigou os es­cravos e os índios a trabalharem doze horas por dia, a fim de construírem uma mansão à beira do rio, no lugar onde hoje é o cais. Depois da bela casa pronta, o maldito tam­bém queria fazer um harém. Mandou buscar mulheres em Salvador. A beleza da índia Cachu o seduziu. Ele queria que ela fosse a favorita do harém. Cachu recusou. O mal­vado a agarrou à força. Ela o esbofeteou. Aquela mão índia foi a primeira mão que esbofeteou aquela face he­dionda. Em seguida ela remou na canoa e fugiu para S.Félix em busca de proteção do seu amado Félix. O mal­vado segui-a com os seus escravos, armados. Tiraram Cachu dos braços de Félix. A uma reação dos pobres ín­dios, que não tinham armas de fogo, o malvado mandou exterminar todos eles, dali, de S. Félix. Salvaram-se ape­nas alguns, que conseguiram fugir para as matas.
Cachu viu o seu amado tombar ao impacto das balas assassinas. A terra e as areias do rio ficaram tintas de sangue. Os corpos dos índios foram atirados no rio. O malvado trouxe Cachu de volta, para Cachoeira. Os índios de Cachoeira junto com o cacique seu pai vieram em sua defesa. Tiveram a mesma sorte que os índios de S. Félix. A grande calçada, que o malvado mandou fazer em volta da casa ficou tinta de sangue, e ainda a terra e a areia. Cachu foi assassinada. A matança de índios foi grande. De am­bos os lados os índios eram bravos. Lutaram até morrer. Suas ilechas eram impotentes, diante das armas de fogo.
Os corpos também foram atirados no rio. As águas do Paraguassu estavam vermelhas, com o sangue dos mártires. O rio Paraguassu foi testemunha daquele massacre. Guar­dava no seu seio os corpos dos mártires. Suas águas cor­riam como lágrimas de dor.
Barnard acendeu grandes fogueiras e fêz uma grande festa, para comemorar o massacre. Para ele tudo estava bem, mas para o rio Paraguassu, não.
Acabadas as festividades todos foram dormir. Só o rio não dormiu. Ele precisava de lavar o sangue dos mártires. O rio, que nunca antes crescera, naquela noite cresceu... cresceu... cresceu o volume de suas águas até atingirem a terra de Cachoeira e S. Félix. O sangue dos mártires foi lavado. O rio continuou crescendo, até cobrir a casa de Bernard. Ele, seus filhos e seus escravos foram carre­gados pela enchente, sem tempo para se defenderem.
O rio só deixou de subir quando não mais existia pedra sobre pedra na casa do malvado.
Depois outros povos vieram, colonizaram S. Félix e Cachoeira. Seus filhos foram nascendo, com fibra de he­róis. A alma de Cachu infundiu mais coragem nos herói­cos filhos de Cachoeira, levando-os a soltarem o primeiro grito de independência, jamais ouvido antes no Brasil. Aquele grito que ecoou por todo o Brasil! Que encheu o Brasil de orgulho! Aquele grito que chegou aos ouvidos de D. Pedro I, conduzindo-o às margens de outro rio, o Ipiranga, onde sua majestade, erguendo a sua espada, soltou aquele histórico "Independência ou Morte"! ([1])
([1]) Este conto é "science fiction", mas sobre o primeiro grito de Independência no Brasil é realidade.
Quando Cachoeira soltou o seu grito de independência S. Félix extasiado ouviu. Seus filhos estavam prontos para ajudar a cidade irmã. Muitos atravessaram o rio e foram unir-se aos heróis. Envolveram-se na mesma bravura. Si­lencioso o Rio Paraguassu contemplou. Ele é a alma e o coração de S. Félix e Cachoeira. Onde nasce, ninguém se preocupa em saber; por onde passa a ninguém importa, o que importa é que a sede do Rio Paraguassu é em Ca­choeira e S. Félix.
Como um réquiem aos índios massacrados, o Rio Pa­raguassu ainda continua, com as enchentes, lavando as calçadas e cobrindo as casas de Cachoeira e S. Félix. Esta última resiste às enchentes, com heroísmo. As duas cidades e o rio são o cartão postal do Estado da Bahia. E Cachoeira, que devia ser o selo de ouro do Brasil, desco­nhecida e esquecida nos tempos de agora, com heroismo resiste às enchentes daquele fabuloso rio, que as autoridades brasileiras nunca tiveram consideração de o mandar dragar, em benefício daquela cidade.

Princesa Kee-Kow (contos). KOSNICK, Maria Chiacchio

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